O mês de abril em que Lula foi preso – 38 anos atrás
Luzes e ruídos de motores vindos da rua assustam a mulher que dorme abraçada ao marido na penumbra do quarto. Despertos, os dois espiam através das cortinas da janela da sala. Diante da residência, estão estacionados carros e viaturas de onde descem homens de terno escuro e semblante carregado. Ouvem-se fortes batidas na porta.
– Luiz Inácio! Abra essa porta!
Já vestido, o homem acaricia o rosto da companheira antes de ser empurrado em direção à viatura.
– Fica tranquila. Não precisa sofrer. Como diz a minha mãe, as coisas vão melhorar.
A cena é um dos momentos culminantes do filme Lula, o filho do Brasil (2010), de Fábio Barreto. A partir de memórias de Luiz Inácio Lula da Silva e Marisa Letícia – casal vivido no longa-metragem pelos atores Rui Ricardo Diaz e Juliana Baroni -, reconstitui livremente a prisão do então sindicalista, em 19 de abril de 1980.
Na época, Lula liderava, no ABC Paulista, uma greve metalúrgica que deixara o país com a respiração suspensa. Trinta e oito anos depois, um outro abril volta a deixá-lo na iminência do encarceramento.
À biógrafa Denise Paraná, autora do livro homônimo que serviu de base ao roteiro do filme, a mulher do futuro presidente relatou momentos de tensão apenas sugeridos na tela. “Marisa, em estado de pavor, temia que a polícia invadisse sua casa e promovesse um massacre ali dentro, na frente das crianças”, escreveu Denise.
Não era medo de todo infundado. A ditadura militar instaurada em 1964, que acabara de completar 16 anos, agonizava, mas não morrera. Prisões arbitrárias, torturas e morte haviam se tornado frequentes. Um dos supliciados que escapara da morte no DOI-Codi, em 1975, era José Ferreira da Silva, o Frei Chico, sindicalista e irmão de Lula.
A atmosfera da época foi registrada por Chico Buarque em Acorda Amor , prudentemente submetida à censura como obra de compositores fictícios: “São os homens / E eu aqui parado de pijama / Eu não gosto de passar vexame / Chame lá, chame o ladrão / Chame o ladrão” .
Em 1980, a prisão de Lula ocorrera sem mandado judicial. Simultaneamente, outras 12 pessoas ligadas ao movimento sindical haviam sido detidas, incluindo os advogados Dalmo Dallari e José Carlos Dias. Não se sabia ao certo quando eles poderiam ser libertados ou por quais crimes estavam sendo encarcerados.
Em 2018, Lula poderá se ver pela segunda vez atrás das grades – embora em condições muito diferentes. Desta vez, a prisão pode ser o resultado de um processo judicial que já se estende há quase dois anos e no qual o ex-presidente foi considerado culpado de receber um apartamento tríplex no Guarujá como propina da construtora OAS.
A sentença, já confirmada em segunda instância, prevê 12 anos e 1 mês de detenção. Nesta quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal decidiu que Lula já poderá começar a cumprir a pena, mesmo sem ter esgotado suas possibilidades de apelação judicial. Desde 1980, ele possivelmente nunca esteve tão perto de voltar a viver em uma cela.
A hora da onça beber água
O nervosismo de Marisa, que morreu em 2017, contrastava com a calma do marido. Lula sabia que, uma vez iniciada a greve, seria grande o risco de ir para a cadeia. No ano anterior, ele e toda a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (hoje Sindicato dos Metalúrgicos do ABC) haviam sido afastados dos cargos pelo governo do general-presidente João Figueiredo.
Divididos em relação ao futuro do regime, os militares estavam unidos em relação ao descontentamento que pairava no ar: queriam aproveitar a paralisação para quebrar a espinha dorsal do movimento sindical do ABC, que ressurgira dois anos antes. Líder emergente, Lula era dos mais visados. Temendo o pior, amigos haviam lhe aconselhado a deixar o país. Ele se recusara.
A campanha salarial de 1980 foi cuidadosamente preparada. O sindicato produziu e distribuiu uma grande quantidade de panfletos, cartazes e boletins que chegam às fábricas (de forma clandestina) e aos bairros. A pauta de reivindicações incluía reposição salarial, redução de jornada e liberdades para atuação do sindicato nas fábricas. Os empresários admitiam, no máximo, repor parte das perdas econômicas. O impasse estava criado.
A assembleia da categoria, no dia 16 de março, foi convocada sob o lema “Tá chegando a hora da onça beber água”. Com uma camiseta que estampava o personagem João Ferrador, criado especialmente pela cartunista Laerte para as publicações do sindicato, Lula perguntou à multidão:
– Muitos dizem até que o empresário tá pobre, que o empresário tá falido, e nós, trabalhadores, é que somos gananciosos. E eu gostaria de colocar em votação: quem é que concorda com a proposta dos patrões? (Vaias, gritos) Quem é que quer a greve segunda-feira à meia-noite? (Milhares de braços se erguem em algazarra).
A greve iniciou-se à meia-noite do dia 1º de abril. Em segredo, a diretoria do sindicato havia criado um “grupo especial” destinado a manter o movimento em caso de prisão dos líderes. A possibilidade de uma nova intervenção do governo nos sindicatos, como ocorrera em 1979, era cogitada abertamente, a ponto de o ministro do Trabalho, Murilo Macedo, reagir durante uma entrevista:
– Eu estou achando que vocês estão com a psicose da intervenção, porque toda vez que vocês me entrevistam vocês me perguntam se vai haver intervenção.
A prisão dos líderes e a intervenção chegaram quando a greve completava o 17º dia. Anos mais tarde, Lula definiria o gesto do regime como providencial:
– O que salvou aquela greve foi os militares decretarem a nossa prisão. Por incompetência. Eu já não tinha o que falar na assembleia depois de 17 dias. (…) O patrão não sentava para negociar, o governo não negociava. (…) Eles prenderam, conseguiram criar um clima de guerra.
TERRA
source https://www.blogdobg.com.br/o-mes-de-abril-em-que-lula-foi-preso-38-anos-atras/
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