Pesquisa estuda relação entre profissionais da saúde e mulheres em processo de aborto no Rio Grande do Norte

Foto: Anastácia Vaz

Pilar de uma boa universidade, a pesquisa acadêmica caminha lado a lado com o progresso das sociedades globais. Um dos campos mais beneficiados com as práticas de pesquisa é a saúde. Desde 2013, por exemplo, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), por meio de um projeto de pesquisa aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), estuda a relação entre profissionais da saúde e mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) durante o processo de aborto em hospitais e maternidades do Rio Grande do Norte.

Quem conduz a pesquisa há cinco anos é a antropóloga e professora Rozeli Porto, atualmente chefe do Departamento de Antropologia da UFRN. Formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a professora trabalha com temáticas ligadas à violência contra a mulher e a saúde reprodutiva humana há muitos anos, tendo explorado os temas durante as suas formações de mestrado e doutorado, tanto no Brasil quanto em países europeus como Portugal e Espanha. Em Lages, Santa Catarina, a antropóloga estudou a situação de mulheres grávidas que sofriam agressões e as registravam em delegacias da região. A partir disso, surgiu a ideia de estudar, também, a problemática do aborto.

Realidade brasileira

Uma a cada cinco brasileiras, ao completar 40 anos, terá feito um aborto. Essa é uma das principais conclusões da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), de 2016, conduzida por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis). O estudo avaliou populações urbanas com rigor científico, utilizando técnicas de urna, o que garante o sigilo das mulheres entrevistadas e a precisão dos dados coletados.

No Brasil, o aborto é legalizado em casos de violência sexual e de risco de vida para a gestante. Desde 2012, a antecipação terapêutica do parto pode ser solicitada em casos onde o feto apresenta condição de anencefalia. Contudo, independentemente da legalidade da prática, a pesquisa conduzida pela professora Rozeli Porto identificou, dentro da amostra estudada, que os procedimentos de interrupção da gravidez e a relação dos profissionais da saúde como as mulheres em processo abortivo são complexos e exigem reflexão.

Pesquisa no Rio Grande do Norte

Uma das principais causas de uma necessária reflexão sobre os procedimentos de atendimento de mulheres em interrupção de gravidez são os valores morais, filosóficos e religiosos que os profissionais da saúde carregam. No entanto, como explica a antropóloga Rozeli Porto, os problemas não estão só no campo ideológico. “O SUS é um sistema impressionante, o projeto é maravilhoso e funciona, mas também tem problemas. As condições de atuação dos profissionais da saúde não são fáceis. Eles têm uma vida árdua, são mal remunerados, muitas vezes possuem mais de um emprego e precisam lidar com situações muito intersubjetivas que são os seres humanos e as suas doenças. Tudo isso, além das motivações religiosas e de cunho pessoal, deve ser levado em consideração na dificuldade que alguns deles têm com a questão do aborto”, afirma a professora.

Foto: Wallacy Medeiros

Realizada no Hospital Dr. José Pedro Bezerra e na Maternidade Escola Januário Cicco (MEJC), em Natal, além de postos de saúde e arredores na região de Caicó, cidade localizada no interior do Rio Grande do Norte, a pesquisa da UFRN contou com a participação de 50 mulheres. “Nosso campo de atuação não ficou só por aí, pois quando as pessoas sabem que você está fazendo pesquisa, outros casos começam a surgir. Algumas outras mulheres vieram nos procurar para falar sobre as experiências. Entrevistamos também diversos profissionais da saúde e, não só eles, como funcionários responsáveis pela limpeza e vendedores que trabalham nos entornos do hospital, da maternidade e dos postos de saúde”, explica a pesquisadora.

Atendimentos

Nos depoimentos coletados, foram ouvidos alguns relatos de negligências por parte de alguns profissionais durante o atendimento a algumas pacientes. Casos onde mulheres em processo abortivo foram preteridas em filas de espera ou de forma constrangedora chamadas de “mães”, sendo colocadas no mesmo ambiente de outras pacientes que amamentavam seus bebês recém nascidos, foram citados. “Não podemos dizer que existe mal atendimento, mas existem sérias dificuldades por conta das questões morais dos profissionais e estruturais do sistema”, relata Rozeli Porto.

Ao mesmo tempo em que identifica pontos problemáticos, a pesquisa também aponta para a existência de muitos profissionais que são sensíveis ao problema de saúde pública e que entendem a importância do atendimento correto para essas mulheres. Alguns deles são contra o ato de interromper a gravidez, mas cumprem o seu papel de forma profissional. Outros, no entanto, utilizam de forma muito constante o preceito médico da objeção de consciência e acabam não tendo contato algum com as pacientes por simplesmente não conseguirem auxiliar nem nos processos mais básicos.

A experiência da equipe

Além de Rozeli Porto, a equipe que foi a campo estudar a problemática do aborto nos ambientes hospitalares do Rio Grande do Norte foi composta por diversas estudantes de graduação e pós-graduação da UFRN. Uma delas, Maynara Costa, na época bolsista de iniciação científica, conta como a atuação foi importante em seu desenvolvimento profissional. “A primeira vez que adentrei as portas do hospital, ainda me lembro, era uma manhã chuvosa. Eu, uma aprendiz de antropóloga, pela primeira vez iria me aventurar pelo campo da pesquisa acadêmica. Queria anotar tudo, gravar tudo, fazer entrevistas, fotografar, mas antes deveria conseguir a anuência para estar lá, para poder pesquisar”, conta Maynara.

Atualmente, mestra em Antropologia Social pela UFRN e doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão, Maynara Costa explica que a pesquisa de campo realizada pela UFRN foi um desafio pessoal. “É preciso resistência para permanecer no campo, e questionar-se sobre o significado da nossa presença nele. Para muitos, e também para mim, frequentar o ambiente hospitalar sempre foi um exercício difícil, pois morte e vida se cruzam nos corredores, o cheiro que assola o ar é uma fragrância de angústia”, revela a doutoranda que, até os dias atuais, resiste e continua com pesquisas na cidade de São Luís, no Maranhão, sobre vítimas de violência sexual.

Perfil e motivações

As mulheres entrevistadas durante a pesquisa apresentaram algumas características em comum. Com parte da metodologia aplicada, as pesquisadoras conversaram, mediante autorização da diretoria das unidades de saúde, com as pacientes que davam entrada nas unidades com quadro de aborto, legal ou “inseguro”, termo que a professora Rozeli Porto utiliza para classificar os abortos não previstos em lei. “A pesquisa não faz apologia ao aborto. Não se trata de quem é contra ou a favor. Os estudos foram realizados em cima de um problema real de saúde pública. Estamos falando da saúde reprodutiva da nossa sociedade”, esclarece a antropóloga.

A maioria das mulheres entrevistadas estava em uma relação estável. Das 50, 48 se classificaram como religiosas – católicas, evangélicas e espíritas -, e apenas duas se disseram ateias. Metade delas tinham filhos. Muitas se autodeclararam negras ou pardas e apresentavam baixa condição financeira. Foram ouvidas mulheres de diversas classes sociais. Todas possuíam escolaridade. Em casos de aborto inseguro, muitas fizeram uso do mesmo medicamento.

A equipe ouviu das entrevistadas diversas razões para a realização do aborto. A interrupção da gravidez é realizada constantemente por ausência de acesso aos métodos contraceptivos de forma regular, seja por falha de distribuição ou ausência de condição financeira para compra. Alguns parceiros, homens, não compreendem a ausência de proteção e coagem as mulheres para que o ato sexual seja realizado independente do uso de contraceptivos, o que gera gravidezes indesejadas. O aborto também vem sendo realizado por mulheres que não querem ter filhos e eventualmente engravidam. Algumas delas mostram preocupações variadas, como a estética. Entre outras situações, algumas vezes a gravidez acontece também por falha dos métodos contraceptivos.

Livro

A pesquisa renderá, em breve, um livro. A publicação está em fase final de produção e tem previsão de lançamento para os próximos meses. O livro é composto pelos resultados da pesquisa, histórias e diversos artigos produzidos pela professora Rozeli Porto e as alunas que compuseram a equipe. “A pesquisa ainda não terminou, mas fechamos um ciclo com a publicação desse livro”, conta a professora.

Trâmites

Todos os procedimentos de pesquisa realizados pela antropóloga Rozeli Porto e sua equipe foram realizados com autorização dos comitês de ética e pesquisa responsáveis. “Até chegarmos nesses hospitais e maternidades buscamos todas as autorizações possíveis. Quando somos nós, antropólogas, trabalhando com saúde, os processos se tornam ainda mais complicados. São diversos processos, como cartas de anuência, termos de confiabilidade e responsabilidade. Temos todos os documentos. Tudo foi colocado em uma plataforma e encaminhado aos comitês e órgãos responsáveis”, explica Rozeli Porto.

Com informações da UFRN

 



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